Contos

Apenas uma fotografia e algumas palavras

Luiz dos Santos Preza


O homem contava o tempo de uma barba grisalha. A pele cheia de dobras e a roupa desgrenhada. Ao meu lado, no banco do ônibus, tinha sobre as pernas “O Céu e o Inferno”, de Allan Kardec. Com as pontas amareladas dos dedos, a miúde, descerrava o livro e retirava de entre suas páginas uma fotografia, sobre a qual planava o olhar, como um albatroz a procura do alimento, e a retornava ao livro, repetidas vezes. Seu peito arfava. E olhando de soslaio para o homem, percebi uma lágrima que hesitava prestes a despencar dos lábios tremelicosos, de um rosto amargurado. A duras penas, ele parecia lutar contra o pranto que ameaçava desabar. O que, naquela fotografia, motivava-lhe tamanha comoção?
Dificilmente puxo conversa com estranhos. Sou uma daquelas pessoas a quem costumam atribuir “uma personalidade pouco comunicativa”. E na verdade é isso mesmo, por temperamento ou talvez excesso de autocrítica. Contudo, nesse caso, não me contive. A curiosidade e a compaixão incitavam-me a artimanha de, devagarzinho, inclinar o tronco na tentativa discreta de descobrir o mistério que para mim havia se tornado aquela fotografia. Inutilmente pensei não despertar a atenção do homem. No entanto, apesar do meu esforço, do arco dos olhos dele, uma flecha foi disparada contra minha ousadia. Sua reação imediata foi curvar-se em concha sobre o livro, atitude que tomei como reprimenda desconcertante. Na defensiva, ele me fez parecer uma criança surpreendida por algo errado que acabara de fazer.
Com o livro numa das mãos e a fotografia na outra, o homem, postando-se de pé, forçou passagem empurrando minhas pernas. No corredor do ônibus, ele girou o corpo sobre os calcanhares, os olhos dele ardiam nos meus, acionou a campainha e, de súbito, atirou a fotografia em minha direção, desferindo a sentença:
- Se o senhor está tão interessado, fique com ela!
E foi embora arrastando os sapatos surrados enfiados nos pés.
Meu coração quase saía pela boca e o ar rarefazia. Era como se um cavalo selvagem pulasse dentro do meu peito. Enfim, segurei a fotografa como se ela fervesse. Ufa!
Esfreguei a malha da camiseta nas lentes dos óculos e deslizei os olhos ao longo da imagem em preto e branco.
No cenário que parecia o de um asilo ou enfermaria de hospital, um corpo ossudo retratava a estabilidade da morte. O viço havia há muito abandonado o rosto daquela mulher, agora tomado pela dor, pela desolação e por uma tristeza profunda oculta nos sulcos que estriavam a pele seca. Aquelas mãos que talvez um dia revestidas de ternura amparara bebês, ali não eram mais que gravetos retorcidos ponteados por unhas que pareciam garras de ave de rapina. Meu olhar era guiado pelos caminhos traçados pelas grossas veias que serpenteavam sobre os pulsos retos, largos e descarnados que se pronunciavam das dobras do manto grosseiro que pendia moldado desde a cabeça sobre a mulher. Tudo nela parecia ter a secura de uma pedra. Contudo, um pedaço de pedra que nos remetia aos personagens vindos ao mundo pelo cinzel de um toscano que acreditava que com seu trabalho podia dizer algo sobre a vida. O medo estava personificado, presente em quem via e era visto. Medo da solidão e do desamparo. Olhos cansados, sem nenhuma inquietação, como os de quem a fé fugira e desistira das súplicas. Parecia que a existência impusera àquela mulher nada esperar desse e de outro mundo.
A fotografia mostrava ainda o arco superior do encosto de ferro de seu único descanso. Atrás da cama não mais que paredes de reboco branco, descascadas aqui e acolá, vazias. Ao lado, um copo e uma garrafa com água, além de uma côdea de pão, sobre a mesinha de cabeceira.
Eu tinha nas mãos uma fotografia e na cabeça aquela sentença:
- Se o senhor está tão interessado, fique com ela!
Procurei o reverso da imagem e lá estava sob uma mancha de café:
“Palavras mortas excluídas do dicionário”.


 

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